Helena Salim de Castro; Ramon Blanco
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
1-23
Identidades fraturadas e segurança
ontológica: uma análise decolonial de
gênero sobre a literatura de Relações
Internacionais
1
Fractured identities and ontological
security: a decolonial gender analysis of
International Relations literature
Identidades fracturadas y seguridad
ontológica: un análisis decolonial de
género de la literatura de Relaciones
Internacionales
DOI: 10.21530/ci.v20n1.2025.1538
Helena Salim de Castro2
Ramon Blanco3
Resumo
O conceito de “segurança ontológica” é trabalhado nas Relações
Internacionais desde diferentes perspectivas. O objetivo do artigo
1 O autor agradece o apoio financeiro proporcionado às suas investigações
pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UNILA sob os seguintes
instrumentos financeiros: PRPPG No 109/2017, PRPPG No 58/2018, PRPPG No
110/2018, PRPPG No 149/2018, PRPPG No 154/2018, PRPPG No 25/2019, PRPPG
No 80/2019, PRPPG No 66/2020, PRPPG No 104/2020, PRPPG No 105/2020,
PRPPG No 166/2021, PRPPG No 191/2021, PRPPG No 205/2021,PRPPG No
77/2022, PRPPG No 90/2022, PRPPG No 102/2023, PRPPG No 121/2023, PRPPG/
IMEA No 16/2023, PRPPG No 118/2024, PRPPG No 05/2025. Além disso, o
autor agradece o apoio financeiro recebido pelo Programa de Pesquisa Básica
e Aplicada da Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico do Paraná e pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico — CNPq.
2 Doutora em Relações Internacionais. Pesquisadora de Pós-Doutorado no
Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do
Paraná (PPGCP/UFPR). (castrohelena281@gmail.com). ORCID: https://orcid.
org/0000-0003-3059-2150.
3 Doutor em Relações Internacionais. Professor Associado da Universidade
Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). (ramon.blanco@unila.edu.
br). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0330-6235.
Artigo submetido em 19/10/2024 e aprovado em 09/05/2025.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Copyright:
This is an open-access
article distributed under
the terms of a Creative
Commons Attribution
License, which permits
unrestricted use,
distribution, and
reproduction in any
medium, provided that
the original author and
source are credited.
Este é um artigo
publicado em acesso aberto
e distribuído sob os termos
da Licença de Atribuição
Creative Commons,
que permite uso irrestrito,
distribuição e reprodução
em qualquer meio, desde
que o autor e a fonte
originais sejam creditados.
ISSN 2526-9038
Identidades fraturadas e segurança ontológica: uma análise decolonial de gênero [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
2-23
foi examinar essa literatura a partir das contribuições de María Lugones e Gloria Anzaldúa.
Por meio de reflexões sobre o “lócus fraturado” e o “terrorismo íntimo”, questionou-se
o papel da identidade na construção do conceito e na busca de segurança ontológica.
Argumentou-se que a ideia de “(in)segurança ontológica” reproduz uma lógica colonial
e patriarcal de identidades fixas e de classificação de sujeitos. A busca pela “segurança
do ser” invisibiliza as vivências de corpos “fraturados”, legitimando a criminalização e
eliminação das diferenças.
Palavras-chave: “(In)segurança ontológica”; Identidade; “Lócus fraturado”; “Terrorismo íntimo”.
Abstract
The concept of “ontological security” has been explored in International Relations from
different perspectives. The aim of this article was to examine this literature based on the
contributions of María Lugones and Gloria Anzaldúa. Through reflections on the “fractured
locus” and “intimate terrorism,” the role of identity in the construction of the concept
and in the search for ontological security was questioned. It was argued that the idea of
“ontological (in)security” reproduces a colonial and patriarchal logic of fixed identities
and subject classification. The search for “security of being” makes the experiences of
“fractured” bodies invisible, legitimizing the criminalization and elimination of differences.
Keywords: “Ontological (in)security”; Identity; “Fractured locus”; “Intimate terrorism”.
Resumen
El concepto de “seguridad ontológica” se trabaja en las Relaciones Internacionales desde
diferentes perspectivas. El objetivo del artículo fue examinar esta literatura a partir de
los aportes de María Lugones y Gloria Anzaldúa. A través de reflexiones sobre el “locus
fracturado” y el “terrorismo íntimo”, se cuestionó el papel de la identidad en la construcción
del concepto y la búsqueda de seguridad ontológica. Se argumentó que la idea de “(in)
seguridad ontológica” reproduce una lógica colonial y patriarcal de identidades fijas y
clasificación de sujetos. La búsqueda de la “seguridad del ser” invisibiliza las experiencias
de los cuerpos “fracturados”, legitimando la criminalización y eliminación de las diferencias.
Palabras clave: “(In)seguridad ontológica”; Identidad; “Locus fracturado”; “Terrorismo íntimo”.
Helena Salim de Castro; Ramon Blanco
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
3-23
Introdução
O conceito de “segurança ontológica” foi cunhado, nos anos 1960, pelo
psiquiatra R. D. Laing. Em seus estudos sobre pacientes com esquizofrenia,
Laing atentou-se para a subjetividade dos sujeitos, ou seja, o modo deles de ser
no mundo. Ele argumentou que uma pessoa ontologicamente segura é aquela
que “enfrentará todos os perigos da vida, sociais, éticos, espirituais, biológicos,
a partir de um senso centralmente firme de sua própria realidade e identidade
e o de outras pessoas4” (Laing 1960 apud Gehring 2023, 4, tradução nossa).
Tal situação não ocorria com os pacientes esquizofrênicos, uma vez que eles
questionavam a própria identidade e autonomia (Gehring 2023).
Alguns anos depois, o sociólogo Anthony Giddens adaptou essa concepção
para analisar o contexto dos indivíduos e das sociedades inseridos na modernidade.
Para Giddens, a segurança ontológica existe nas situações em que os indivíduos
possuem senso de agência e contam “com uma certa medida de confiança e
estabilidade em rotinas, ambientes materiais e narrativas sociais
5
.” (Gehring 2023, 5,
tradução nossa). Além disso, segundo o sociólogo, essa segurança “requer a
construção de relacionamentos baseados na confiança mútua e na eliminação
da alteridade para abordar questões comuns a todos
6
.” (Giddens 1991 apud
Untalan 2019, 3, tradução nossa).
A partir desses trabalhos, o conceito de “segurança ontológica” e as discussões
sobre subjetividade, identidade, ansiedades, narrativas e rotinas passaram a
permear os estudos de Relações Internacionais (RI), conformando o que Gehring
(2023) denomina de “Estudos de Segurança Ontológica” (OSS, na sigla em inglês).
Nosso objetivo neste artigo é analisar essa literatura, a fim de debater, desde uma
perspectiva decolonial e de gênero, como as abordagens tradicionais de RI sobre
“segurança ontológica” invisibilizam a realidade dos corpos e das subjetividades
localizados nas fronteiras identitárias. Em diálogo com perspectivas mais críticas
dos OSS, como a de Rossdale (2015), Kinnvall (2017) e Bilgic (2024), buscamos
ampliar essa literatura e trazer novos elementos para discussão teórico-conceitual.
A questão central que norteia nossa análise é: em que medida o conceito de
4 Original: “will encounter all the hazards of life, social, ethical, spiritual, biological, from a centrally firm sense
of his own and other people’s reality and identity.
5 Original: “a certain measure of trust and stability in routines, material environments, and social narratives.”
6 Original: “ontological security requires building relationships based on mutual trust and elimination of otherness
to address issues common to all.
Identidades fraturadas e segurança ontológica: uma análise decolonial de gênero [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
4-23
“segurança ontológica”, como trabalhado em grande parte da literatura de RI,
invisibiliza as experiências e realidades de corpos e subjetividades ontologicamente
“incompletos” ou “fraturados”? Para respondê-la, trazemos as reflexões de
María Lugones sobre “colonialidade de gênero e “lócus fraturado”, e de Gloria
Anzaldúa sobre os sujeitos que habitam as fronteiras (“nepantla”) e vivenciam
o “terrorismo íntimo”. As contribuições dessas autoras trazem para a análise
da “(in)segurança ontológica” as identidades de “fronteira” e/ou “fraturadas”
dos corpos e subjetividades que são atravessados por marcadores de gênero,
sexualidade, raça, etnia, entre outros, como é o caso de mulheres indígenas,
caribenhas, negras etc.
A partir dessa ampliação do debate é possível elucidar como o conceito de
“(in)segurança ontológica”, da forma como é trabalhado e evocado por parte da
literatura de RI, é permeado por, bem como reproduz, concepções patriarcais e
coloniais de pertencimento. Ao enfatizar a necessidade de estabilidade e certeza
em relação ao “eu” e aos “outros”, a busca por essa segurança do ser reforça e
mantém estruturas de conhecimento e de práticas políticas que invisibilizam e
criminalizam os corpos, as subjetividades e as experiências daqueles que não
se encaixam em definições ontológicas claras.
O debate sobre “(in)segurança ontológica” nas
Relações Internacionais
O conceito de “segurança ontológica” remete, de modo geral, a um sentido
e entendimento consistentes de um “eu”, que é diferente de, mas reconhecido
por, “outros” (Zarakol 2017). Para os autores pioneiros no desenvolvimento do
conceito, R. D. Laing e Anthony Giddens, “a pessoa ontologicamente segura
tem um sentido estável de ser, uma certa medida de confiança nas narrativas
nas quais esse sentido de ser é estabelecido [e continuado], e a capacidade de
aceitar essas narrativas como contingentes, até certo ponto.7” (Rossdale 2015,
372, tradução nossa).
Nas Relações Internacionais, o conceito de “segurança ontológica” tem sido
explorado sob diferentes perspectivas. De modo geral, o seu uso, por parte dessa
literatura, tem justificado uma mudança do enfoque tradicional na segurança
7 Original: “the ontologically secure person has a stable sense of being, a certain measure of trust in the narratives
on which that sense of being is established, and the ability to accept these narratives as contingent to some extent.”
Helena Salim de Castro; Ramon Blanco
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
5-23
física, ou o entendimento da “segurança como sobrevivência”, para a discussão
da “segurança do ser”. Um dos primeiros trabalhos a dialogar com esse conceito
foi o de Jeffrey Huysmans (1998). O autor distingue a segurança ontológica
da segurança diária/física, descrevendo a primeira como “uma estratégia de
gerenciamento dos limites da reflexividade — a morte como o indeterminado —
fixando as relações sociais em uma ordem simbólica e institucional
8
” (Huysmans
1998, 242, tradução nossa). Em outras palavras, a segurança ontológica estaria
relacionada com o gerenciamento de uma determinada ordem social e política.
Apesar desse pioneirismo de Huysmans, foi nas análises estadocêntricas
que o conceito de (in)segurança ontológica ganhou destaque e foi amplamente
disseminado na área de Relações Internacionais (Mitzen 2006 ; Steele 2008;
Zarakol 2017). Uma das pioneiras nessa linha foi Jennifer Mitzen. A segurança
ontológica, de acordo com a autora, é uma necessidade constante dos Estados.
Eles demandam uma certa estabilidade e certeza a respeito de quem são e quais
as suas expectativas. As práticas, as narrativas e os comportamentos rotineiros
gerariam a constituição de entendimentos sobre nós e os outros, diminuindo, assim,
as incertezas e ansiedades — elementos geradores da “insegurança ontológica”
(Mitzen 2006).
De acordo com Mitzen (2006), a “insegurança ontológica” refere-se a um
estado de profunda incerteza acerca dos perigos existentes e sobre quais devem
ser enfrentados ou ignorados. Para evitar essa condição, os Estados recorrem à
rotina, ainda que isso implique, muitas vezes, o apego a práticas conflituosas,
comportamentos competitivos e a resistência a oportunidades de cooperação
(Mitzen 2006). A centralidade de rotina também é enfatizada por Steele (2008)
que, alinhado à perspectiva estadocêntrica, argumenta que:
Os Estados-nação buscam segurança ontológica porque querem manter
autoconceitos consistentes, e o ‘‘Self’’ dos estados é constituído e mantido
por meio de uma narrativa que dá vida a ações rotineiras de política externa.
Essas rotinas podem ser interrompidas quando um Estado percebe que
suas ações narrativas não refletem mais ou não são refletidas por como ele
se vê. Quando esse senso de autoidentidade é deslocado, um ator buscará
restabelecer rotinas que podem, mais uma vez, manter consistentemente
a autoidentidade
9
(Steele 2008, 3, tradução nossa).
8 Original: “Ontological security is a strategy of managing the limits of reflexivity — death as the undetermined
— by fixing social relations into a symbolic and institutional order.”
9 Original: “Nation-states seek ontological security because they want to maintain consistent self-concepts, and
the ‘‘Self’’ of states is constituted and maintained through a narrative which gives life to routinized foreign
Identidades fraturadas e segurança ontológica: uma análise decolonial de gênero [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
6-23
Enquanto Mitzen (2006) relaciona a “segurança ontológica” às interações entre
Estados, Steele (2008) a vincula a dinâmicas internas, enfatizando os aspectos
subjetivos dos agentes estatais, como identidade e vergonha. Nesse sentido, o
autor destaca a importância da continuidade da narrativa biográfica10 para a
segurança ontológica. A segurança ontológica diz respeito a como um Estado
vê a si mesmo e como quer ser visto por outros e a um senso de continuidade e
ordem das ações. A ruptura do senso de autoidentidade é tão significativa para os
Estados quanto as ameaças à sua integridade territorial ou física (Steele 2008, 2).
Essa ruptura é o que causa a ansiedade e pode levar o agente estatal a uma
decisão incorreta diante de uma situação de desafio. É o que Steele (2008) denomina
de “vergonha” — a sensação de que houve um rompimento do sentido de “eu” de
um Estado. A segurança ontológica é rompida quando um Estado, por meio dos
agentes estatais que têm autoridade para representá-lo, reconhece que suas ações
foram incongruentes com a narrativa biográfica (ocorre um “remorso discursivo”).
Nas palavras do autor, a “vergonha é um sentimento de transgressão muito mais
privado e produz um sentimento mais profundo de insegurança porque significa
que alguém se comportou de uma maneira que considerou incongruente com
seu senso de autoidentidade.11” (Steele 2008, 53, tradução nossa).
Os trabalhos desses dois autores têm sido amplamente citados e reproduzidos
nas Relações Internacionais (Peoples e Vaughan-Williams 2021). No entanto, é
possível identificar uma ampliação do debate sobre e com o conceito “(in)segurança
ontológica”. Recentemente, há um esforço de interlocução com perspectivas críticas
dos Estudos de Segurança Internacional, bem como um resgate do trabalho de
Huysmans (1998 ). Tais análises críticas “derivam da tensão que existe a partir
da possibilidade de que os impulsos de segurança ontológica nos Estados-nação
possam aprisionar e/ou marginalizar outros internos e ‘externos’12.” (Steele
2008, 63, tradução nossa).
policy actions. Those routines can be disrupted when a state realizes that its narratived actions no longer
reflect or are reflected by how it sees itself. When this sense of self-identity is dislocated an actor will seek to
re-establish routines that can, once again, consistently maintain self-identity.”
10 Steele (2008) adota o entendimento de Giddens sobre a “narrativa biográfica”, no qual ela é entendida como
o(s) enredo(s) através do(s) qual(is) a autoidentidade é construída e interpretada de forma reflexiva, tanto pelo
próprio indivíduo quanto por aqueles ao seu redor. No que concerne à análise sobre os Estados, a narrativa
biográfica refere-se àquelas histórias contadas pelos agentes estatais que vinculam “uma política com uma
descrição ou entendimento de um ‘eu’ de um Estado.”.
11 Original: “Thus, shame is a much more private sense of transgression and produces a deeper feeling of insecurity
because it means that someone behaved in a way he or she felt was incongruent with their sense of self-identity.”
12 Original: “derive from the tension which exists from the possibility that ontological security drives in nation-
states can imprison and/or marginalize internal and ‘‘external’’ others”.
Helena Salim de Castro; Ramon Blanco
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
7-23
Um dos trabalhos nessa linha é o de Towns (2002). Desde uma perspectiva
construtivista, a autora analisou como o governo sueco, ancorado em uma política
externa de igualdade de gênero, promoveu um processo nacional e internacional
de diferenciação e divisões. A vinculação da defesa da igualdade de gênero com
a identidade nacional levou o governo a identificar como inimigos os grupos
e as comunidades que, de certa forma, não garantiam tal igualdade. A autora
analisou especificamente o caso de cidadãos islâmicos, que, embora nascidos
na Suécia, passaram a ser vistos como uma ameaça à identidade nacional do
país europeu, pois divergiam do entendimento de igualdade de gênero proposto
e divulgado por sua política externa (Towns 2002).
Ao colocar em foco a relação entre segurança e pertencimento, o conceito de
(in)segurança ontológica tem ganhado espaço em análises pós-coloniais, onde os
autores rompem com a análise estadocêntrica e propõem outros entendimentos
sobre o tema. A literatura aborda, por exemplo, como distintos elementos (sociais,
religiosos, raciais, de gênero etc.) permeiam o senso de pertencimento e as fronteiras
que separam uma comunidade, uma cultura ou a nação (Shani 2007; Cash e
Kinnvall 2017) e como eles constroem os discursos sobre insegurança ontológica,
os quais permitem (des)legitimar certos posicionamentos e interesses políticos
(Hansen 2023). Para Untalan (2019), uma análise pós-colonial da “segurança
ontológica” tensiona a imagem do Outro como um arquétipo da insegurança
ontológica e abre caminho para uma análise sobre a relação de coexistência
mútua entre o Eu e o Outro.
Algumas autoras também trabalham com perspectivas feministas e/ou de
gênero para analisar a (in)segurança ontológica. Kinnvall (2015 ), por exemplo,
analisa o processo de construção de fronteiras, físicas e/ou imaginárias na Europa,
em que movimentos da extrema direita, baseados em noções generificadas de
masculinidade, determinam quem pertence ao “eu” e quem são os “outros”.
Gaweda (2022), por sua vez, aborda como os estereótipos e binarismos de gênero
são instrumentalizados em discursos políticos para diferenciar o “eu” do “outro”.
O trabalho da autora ressalta que o medo da efeminação (tornar-se feminino
ou com características ligadas à feminilidade) gera ansiedades de gênero que
podem legitimar certas políticas de segurança (Gaweda 2022).
Analisando o filme “Guerra Z”, Armstrong (2023) observou como as dicotomias
e os estereótipos de gênero permeiam os discursos e as narrativas de ansiedade
e vulnerabilidade, de modo a legitimar a militarização como uma resposta à
insegurança ontológica, e, com isso, garantir o retorno de valores “tradicionais”
Identidades fraturadas e segurança ontológica: uma análise decolonial de gênero [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
8-23
da sociedade. Desde um feminismo pós-estruturalista e um realismo cristão
feminista13, Gentry (2020) propôs um deslocamento da análise sobre a ansiedade.
Diferentemente das abordagens estadocêntricas, que pregam o apego à rotina
para evitar a ansiedade e, com isso, uma situação de insegurança ontológica, a
autora analisa o potencial transformador de algumas emoções, como o amor e
a esperança, para superar situações de incertezas e ansiedade. Segundo Innes
(2023), uma análise de gênero mostra como os estudos tradicionais de segurança
ontológica são incapazes de considerar as desigualdades interseccionais dentro
das narrativas sociais de segurança e com isso desconsideram as diferentes
inseguranças ontológicas presentes dentro de uma mesma comunidade ou nação.
Ainda dentro do quadro geral de análises de gênero, cabe mencionar aqueles
trabalhos que trazem os estudos queer para tensionar ou dialogar com as análises
sobre “(in)segurança ontológica”. Rossdale (2015), trazendo as contribuições de
Judith Butler e Dora Haraway, tensiona a literatura ao elucidar o caráter fraturado
e instável de certas subjetividades e propõe um olhar diferente e positivo sobre
a insegurança ontológica. Em diálogo com uma análise lacaniana e queer, Bilgic
(2024) debate como o poder é produzido no processo de busca pela segurança
ontológica. O autor afirma que essa busca, que é uma busca por uma fantasiosa
completude, é um projeto político de disciplinar sujeitos (Bilgic 2024).
Apesar de partirem de pressupostos teóricos por vezes distintos, essas análises
propõem uma reflexão sobre o caráter político (e normativo) do processo de
reivindicação da “segurança ontológica”. Próximos do entendimento de Huysmans
(1998) sobre a segurança como um “significante espesso14”, essa literatura questiona
quem são os atores que estabelecem as narrativas de segurança e como eles operam.
Em outras palavras, o objetivo seria direcionar “a atenção para a política das
estratégias de busca de segurança ontológica, tanto no sentido de que algumas, em
sua resposta à insegurança, possam ser violentas e/ou contraproducentes, quanto
no sentido de que outras possam sinalizar cumplicidade ou privilégio dentro de
uma ordem social e política violenta.15” (Rossdale 2015, 374, tradução nossa).
13 Segundo Gentry (2020), o realismo cristão feminista parte de uma crítica pós-estrutural e interseccional
do realismo cristão proposto por Reinhold Niebuhr, o qual baseava as repostas para a ansiedade em uma
abordagem masculinista sobre justiça e a balança de poder. Assim, a autora trabalha com o Realismo Cristão
Feminista, que traria soluções baseadas em outras emoções e sentimentos, como o amor.
14 Para Huysmans (1998), essa interpretação da segurança permite observar como ela funciona como uma
categoria que articula, gerencia e organiza formas de vida.
15 Original: “Rather, it places attention on the politics of ontological security-seeking strategies, both insofar as
some may, in their response to insecurity, be violent and/or counter-productive, and insofar as others may
signal complicity or privilege within a violent social and political order.”
Helena Salim de Castro; Ramon Blanco
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
9-23
Esse debate passa, necessariamente, por uma discussão a respeito da
concepção e das relações entre o “eu” e o “outro”, bem como da essencialização
da identidade, dentro da literatura de “segurança ontológica”. Na seção seguinte,
buscamos explorar essas discussões, a fim de elucidar os avanços e as críticas
desenvolvidas na área de Relações Internacionais e situar a nossa contribuição
desde um pensamento feminista decolonial.
Uma análise sobre o “eu” e as identidades na literatura de
“(in)segurança ontológica”
Na literatura de Relações Internacionais, os trabalhos sobre “(in)segurança
ontológica” tendem a analisar o “eu” (seja um indivíduo, um grupo social ou
um Estado) como sinônimo de identidade (Browning e Joenniemi 2017). Essa
compreensão está particularmente presente nas análises estatais, as quais destacam
o papel da identidade e do senso de pertencimento na garantia da segurança.
Mitzen (2006), por exemplo, argumenta que o Estado tem uma identidade
coerente. Os indivíduos, dentro das fronteiras estatais, seriam homogeneizados,
o que permite, segundo a autora, afirmar que a segurança ontológica de um
Estado é a segurança ontológica dos cidadãos (Mitzen 2006).
Para Steele (2008), a autoidentidade do Estado é contestada politicamente, pois,
os indivíduos que representam essa instituição possuem interesses e entendimentos
distintos com relação às escolhas políticas. No entanto, o autor argumenta que,
apesar das diferenças, os agentes estatais sempre visam atender e seguir o sentido
de autoidentidade dos Estados que representam (Steele 2008). Para garantir a
segurança ontológica, o Estado (na figura dos agentes estatais) constrói e busca
seguir uma narrativa biográfica que fornece um senso de continuidade da sua
identidade. Em síntese, a segurança só é possível por causa da narrativa construída
pelos agentes estatais, a qual, por sua vez, é comprometida com a autoidentidade.
O foco dessas análises na relação entre “(in)segurança ontológica” e a
questão da estabilidade da identidade tem sido criticada em trabalhos que
adotam outras perspectivas teóricas. O processo de busca por uma identidade
estável omite os prejuízos que a demanda por “segurança ontológica” implica
sobre o “Outro” (Untalan 2019) e leva à securitização da identidade (Browning
e Joenniemi 201 7). Como argumenta Huysmans (1998, 242, tradução nossa),
a segurança entendida como gerenciamento “requer que aqueles ‘elementos’
Identidades fraturadas e segurança ontológica: uma análise decolonial de gênero [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
10-23
que não podem ser classificados, que são ambivalentes e, portanto, têm a
capacidade de tornar problemática esta função ontológica do sistema estatal,
sejam eliminados, possivelmente através da construção inimiga.16”.
De acordo com Untalan (2019), os estudos de segurança ontológica tendem
a focar na construção identitária do Eu, enquanto ignora-se o Outro como fonte
para o aprendizado do internacional. Nas palavras da autora:
O Eu é geralmente retratado como um sujeito dominante que constrói o
Outro como um instrumento para reafirmar seus compromissos egoístas. No
que diz respeito ao Self do Outro, há uma tendência a reduzir o Outro a um
estado de insegurança ontológica, o que sem dúvida reforçou os limites que
separam o Eu do Outro. [...] Assim, embora não haja nada inerentemente
errado em buscar preservação de status, orgulho e reconhecimento para
motivar o senso de autoestima, os preceitos da TSO [Teoria de Segurança
Ontológica] Westfaliana e centrada no Estado impedem a possibilidade de
ver e aprender que a Alteridade é um componente crucial da segurança
ontológica
17
(Untalan 2019, 4, tradução nossa).
Como explica Kinnvall (2017, 96-97, tradução nossa), a maioria dos trabalhos
sobre segurança ontológica ignora “que a identidade é um fenômeno coletivo
e mutável, que não é equivalente à soma dos indivíduos18”, o que incorre no
“risco de ignorar as múltiplas identificações subjetivas, conforme explicitado
em grande parte da psicanálise em termos de fantasia inconsciente e desejo e
pensamento reprimidos
19
. Para romper com essa perspectiva essencialista e
visando reformular o conceito de segurança ontológica, a literatura tem abordado
as mudanças e o processo reflexivo de (re)construção das identidades, e tem
buscado separar a análise sobre identidade daquela sobre o “eu”:
16 Original: “This requires that those ‘elements’ which cannot be classified, which are ambivalent, and thus have
a capacity to render problematic this ontological function of the state system, have to be eliminated, possibly
through enemy construction.”
17 Original: “The Self is usually portrayed as a dominant subject who construes the Other as an instrument for
reaffirming her egotistical commitments. Where the Other’s Self is concerned, there is a tendency to reduce
the Other to a state of ontological insecurity, which has arguably reinforced the boundaries separating the Self
from the Other. [...] Thus, although there is nothing inherently wrong in seeking status preservation, pride,
and recognition to motivate one’s sense of self-worth, the precepts of Westphalian, state-centric OST foreclose
the possibility of seeing and learning from the perspective of Otherness as a crucial component of ontological
security. ”.
18 Original: “thus overlooking that identity is a collective and changeable phenomenon that is not equivalent to
the sum of the individuals”.
19 Original: “the risk of ignoring multiple subjective identifications as spelt out in much psychoanalysis in terms
of unconscious fantasy and repressed desire and thought. ”.
Helena Salim de Castro; Ramon Blanco
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
11-23
o self deve ser visto como analiticamente distinto das identidades que ele
busca para garantir uma sensação de estar no mundo. Sujeitos “lançados
no mundo” necessariamente se envolvem em processos de identificação,
mas como o mundo evolui constantemente, eventos deslocatórios desafiarão
as identificações existentes, potencialmente gerando ansiedade. Em tais
situações, os sujeitos podem muito bem tentar se agarrar às articulações
existentes de identidade. No entanto, embora a estabilidade seja um elemento
importante da segurança ontológica, manter uma distinção entre self e
identidade (identificação) nos permite destacar que, em sua essência, a
segurança ontológica também requer flexibilidade e adaptabilidade —
capacidades intimamente relacionadas ao senso mais geral de confiança,
autoestima e confiança básica de um self
20
(Browning e Joenniemi 2017,
14, tradução nossa).
Para Innes (2023), esse processo de desafiar as “identificações existentes”
é evidente em episódios traumáticos. Há alguns eventos, como é o caso de atos
de violência sexual, em que ocorre um trauma coletivo21, capaz de gerar uma
insegurança ontológica patológica. Quando esse tipo de trauma ocorre, há o
rompimento das narrativas biográficas e dos “eu” existentes. Nesse processo,
o “self” é rompido e desfeito e a velha narrativa de identidade deixa de existir
e novas são criadas. No entanto, como argumenta a autora, em sociedades
desiguais, nem todos os traumas coletivos são elevados para o nível do Estado
e nem todos os atores têm o potencial (político e econômico) de reconstruir a
identidade e a segurança ontológica após esses momentos. Aqueles que o tem
são, em geral, as elites patriarcais e brancas (Innes 2023).
Assim, há vários episódios que, por acometerem sujeitos ou coletivos
marginalizados e/ou excluídos da concepção de identidade nacional, não são
levados ao nível estatal, o que impede que entrem em uma agenda de segurança
20 Original: “there has been a tendency in analyses to reduce ontological security down to a question of identity
preservation and stability, particularly when moving from theoretical development to empirical application.
This tendency, we argued, stems from the propensity to conflate self with identity, seeing them as two sides
of the same coin and largely interchangeable. In contrast, we argued the self should be viewed as analytically
distinct from the identities it reaches for in order to secure a sense of being in the world. ‘Thrown into the world’
subjects necessarily engage in processes of identification, but since the world constantly evolves, dislocatory
events will challenge existing identifications, potentially generating anxiety. In such situations, subjects may
well try and cling onto existing articulations of selfhood. However, while stability is an important element of
ontological security, upholding a distinction between self and identity (identification) enables us to highlight
that, at its core, ontological security also requires flexibility and adaptability — capacities closely related to a
self’s more general sense of confidence, self-esteem and basic trust.”.
21 O trauma coletivo ocorre quando um episódio abala e interrompe as crenças, identidades ou rotinas de um
grupo (seja ele nacional ou transnacional). Além disso, para ser constituído como um trauma coletivo deve
haver um espaço para culpa política e responsabilização (Innes 2023).
Identidades fraturadas e segurança ontológica: uma análise decolonial de gênero [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
12-23
(Innes 2023). De modo a superar essa exclusão e marginalização do “Outro”,
Untalan (2019) propõe uma análise pós-colonial que esclarece como um “nós”
mutuamente constituído pode fazer emergir a percepção compartilhada do Eu
e do Outro de que os problemas são comuns. A autora sugere uma nova base
para a segurança ontológica, na qual a inclusão e a emancipação do Outro
desempenham um papel central. Isso ocorre quando o Outro se transforma em
um “terceiro híbrido” — uma figura que surge a partir do encontro com o Eu,
recusando-se a adotar suas estratégias e desestabilizando seus fundamentos,
abrindo, assim, espaço para uma relação de coexistência mútua. A segurança
ontológica não seria, portanto, apenas o resultado de um sentido estável do ser,
de uma identidade estável, “mas também um senso estável de um propósito
informado pós-colonialmente22” (Untalan 2019, 14, tradução nossa).
Outras críticas veem daqueles autores que, desde os estudos queer, propõem
um diálogo mais direto com a concepção de Huysmans (1998 ) da segurança
ontológica como o gerenciamento da ordem social. Rossdale (2015), por exemplo,
destaca o binarismo presente na literatura de Relações Internacionais, que,
segundo ele, “escreve (ou disciplina) aqueles movimentos, agentes e práticas que
atravessam, vão além ou interrompem o terreno da in/segurança ontológica23
(Rossdale 2015, 378, tradução nossa).
Enquanto as análises estadocêntricas tendem a obscurecer a “natureza
fragmentada e múltipla” das narrativas e biografias do “eu”, os trabalhos mais
críticos tensionam como o discurso da “segurança ontológica” promove uma
busca pela (fantasia de) completude do “self”. Essa busca, por sua vez, é um
projeto político que gera a construção de regimes de normalidade, que separam,
marginalizam e buscam disciplinar os corpos daqueles considerados abjetos e/
ou perversos, vistos como empecilhos para a completude dos demais (Bilgic
2024). Os estudos queer ajudam a elucidar esse processo social e político de
normalização e colocam em debate as subjetividades fraturadas, consideradas
instáveis, incompletas e fracassadas. Como escreve Roosdale:
A Teoria Queer em particular fornece recursos para reimaginar o sujeito
dessa forma, precisamente porque aqueles que trabalham nesse campo
buscaram desnaturalizar as identidades e binarismos supostamente estáveis
22 Original: “Ontological security not only means a stable sense of being but also a stable sense of a postcolonially
informed purpose ”.
23 Original: “The binary analytic writes out (or disciplines) those movements, agents, and practices which cut
across, move beyond, or disrupt the terrain of ontological in/security…”.
Helena Salim de Castro; Ramon Blanco
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
13-23
que constituem as identidades sexuais e de gênero contemporâneas.
A instabilidade essencial dessas identidades e as múltiplas violências
envolvidas na imposição de narrativas estáveis provocam a exploração de
identidades que desafiam os termos da segurança e insegurança ontológicas
24
(Rossdale 2015, 378, tradução nossa).
Gehring (2023) também destaca a dificuldade que a literatura tradicional
de segurança ontológica tem para se desfazer de uma proposição em prol
da gestão, adaptação e ou aceitação de identidades. A autora considera que
mesmo os trabalhos que partem de uma reflexão lacaniana e pós-colonial25
ainda “não questiona[m] a política do ser em um sentido mais amplo, uma vez
que continua[m] a se envolver na ordenação ao longo das lógicas binárias de
totalidade/carência e Eu/ordem.26” (Gehring 2023, 12, tradução nossa).
Desse modo, a proposta de Gehring é retomar a concepção de Huysmans
sobre a segurança como “significante espesso”, tensionar o papel do encontro
colonial na ordenação racial e propor uma análise onde a subjetividade não seja
colapsada dentro de noções de identidade. Como ela própria escreve, seu objetivo
é ir além da ênfase dos estudos “sobre a produção da identidade e securitização
e expor as ordens raciais de conhecimento que tornam a ‘identidade’ possível
27
.”
(Gehring 2023, 3, tradução nossa).
Para isso, Gehring (2023) evoca as reflexões da pesquisadora cubano-jamaicana
Sylvia Wynter 28 sobre a emergência do “eu” como uma práxis auto poética.
Em vez de ser visto como um substantivo ou um dado biológico, o ser humano
24 Original: “Queer Theory in particular provides resources for reimagining the subject in this fashion, precisely
because those working in this field have looked to denaturalize the supposedly stable identities and binaries
which constitute contemporary sexual and gender identities. The essential instability of such identities, and
the manifold violences involved in the imposition of stable narratives, provokes the exploration of identities
which offend against the terms of ontological security and insecurity. ”.
25 Segundo Gehring, alguns trabalhos têm partido de um leitura pós-colonial da teoria de Jacques Lacan, que
entende o sujeito como constituído por uma ausência inerente, para pensar sobre segurança ontológica. São
pesquisas que analisam, por exemplo, os discursos políticos que categorizam sujeitos migrantes ou refugiados
como o “Outro” distinto e inferior ao “Eu” nacional (Gehring 2023).
26 Original: “the literature does not interrogate the politics of being in a fuller sense since it continues to engage
in ordering along wholeness/Lack and Self/Order binary logics. ”.
27 Original: “which extends beyond OSS’ emphasis on identity production and securitisation in order to expose
the racial orders of knowledge that make ‘identity’ possible.”
28 Para elaborar sua teoria, Wynter retoma o processo histórico de construção do “homem branco-cristão-
racional-político”, iniciado na Renascença cristã e que ganhou novos significados com o colonialismo europeu
e o “encontro” com os povos indígenas, africanos, asiáticos, caribenhos etc. Esses momentos construíram a
ideia da existência de uma “diferença natural” de seres humanos, de humanidade; sendo que, para aqueles
que foram colonizados essa última foi negada — eram não-humanos (Gehring 2023).
Identidades fraturadas e segurança ontológica: uma análise decolonial de gênero [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
14-23
deve ser entendido “como um verbo, como algo mutável e relacional”, que é
formado por estruturas de conhecimento coloniais e raciais (Gehring 2023, 19,
tradução nossa). Como explica a autora:
Uma compreensão do self como auto poético interroga ordens modernas de
conhecimento que privilegiam categorizações pseudocientíficas/humanistas
da subjetividade, em vez de oferecer uma metodologia para uma reescrita
radical do ser humano que se recusa a ser ordenado. Central para essa
reescrita é uma libertação dos códigos raciais que se estendem além das
noções de raça e racialização como marcadores de identidade, mas que
de fato constituem e estruturam nossa modalidade atual de ser humano
29
(Gehring 2023, 22, tradução nossa).
Essa literatura propõe, portanto, uma crítica e um rompimento com aquelas
análises sobre “(in)segurança ontológica” que tendem a fixar e entrincheirar
as identidades e as subjetividades e que, por conseguinte, acabam por não
questionar as ordens simbólicas (raciais e de gênero) que as sustentam.
A tendência dos estudos de segurança ontológica nas Relações Internacionais
em afixar as identidades sociais em uma concepção (ocidental) do que é “ser
humano” invisibiliza, bem como promove, as violências vivenciadas pelos sujeitos
“fraturados” e/ou “deselecionados” — como nomeados por Wynter — em um
contexto de enfrentamento das incertezas e ansiedades. Na próxima seção,
buscamos contribuir para esse debate com as reflexões propostas por autoras
feministas decoloniais, que trazem para o foco da análise as experiências dos
corpos que se encontram na “fronteira” (física, sexual, de gênero, racial etc.).
(In)segurança ontológica e a fratura decolonial de corpos
e subjetividades
Embora não tenham proposto uma análise sobre esse tema, consideramos
que os conceitos das autoras-ativistas María Lugones e Gloria Anzaldúa trazem
elementos que contribuem para deslocar e tensionar o debate sobre “(in)segurança
29 Original: “An understanding of the self as autopoetic interrogates modern orders of knowledge that privilege
pseudo-scientific/humanist categorisations of subjectivity, instead offering a methodology for a radical rewriting
of being human that refuses to be ordered. Central to this rewriting is a liberation from the racial codes which
extend beyond notions of race and racialisation as identity markers, but indeed constitute and structure our
current modality of being human. ”.
Helena Salim de Castro; Ramon Blanco
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
15-23
ontológica” nas Relações Internacionais. A fim de dialogar com aqueles trabalhos
que elucidam a tendência dos OSS de fixar identidades e de legitimar políticas de
gerenciamento e ordenação, apresentamos algumas das reflexões dessas autoras,
que analisam o impacto da colonialidade nas sociedades latino-americanas e
lançam luz para o caráter transgressor dos corpos e subjetividades que estão
nas fronteiras identitárias e/ou geográficas.
María Lugones foi uma importante socióloga e ativista argentina. Conhecida
como a precursora do Feminismo Decolonial, ela propôs uma expansão das
discussões que vinham sendo realizadas, desde pelo menos a década de 1990,
pelo então denominado Grupo Modernidade-Colonialidade
30
. O grupo ressaltava
que, a partir da colonização, foi imposta, na América Latina, o conceito moderno
de raça, que levou à organização do mundo em termos de categorias homogêneas,
atômicas e separáveis. No entanto, para Lugones (2014), esse sistema também
introduziu o conceito moderno de gênero, o que contribuiu para a indiferença
dos homens colonizados com relação à violência contra as mulheres não-brancas.
O objetivo da autora foi, portanto, lançar luz sobre as vivências e opressões
das mulheres latino-americanas racializadas. Para isso, ela cunhou o conceito
de “colonialidade de gênero”, que “refere-se a um processo de redução ativa
das pessoas, de desumanização que serve para a classificação, o processo de
subjetivação, a tentativa de tornar o colonizado menos que ser-humano.” (Lugones
2014, 939). A partir desse conceito, Lugones (2014) destaca a interação entre
gênero e raça como marcadores que, introduzidos nas relações coloniais, organizam
a vida em sociedade. Tais marcadores foram internalizados na América Latina,
de modo a sustentar as estruturas de dominação (institucional, epistemológica
e ontológica) sobre os corpos racializados de homens e mulheres.
O conceito de “segurança ontológica”, como foi trabalhado em parte da
literatura de Relações Internacionais e incorporado em discursos políticos, acaba
por reproduzir esse sistema moderno colonial de gênero, que busca classificar e
essencializar os indivíduos por meio de uma lógica dicotômica. Ao entender a
segurança ontológica como uma questão de preservação da identidade, acaba-se
30 Como explica Ballestrin (2013), um dos pilares do pensamento do grupo é o conceito de “colonialidade do
poder”, desenvolvido por Aníbal Quijano em 1989. De modo geral, o conceito constata que “as relações de
colonialidade nas esferas econômica e política não findaram com a destruição do colonialismo” (Ballestrin
2013, 99). Outros autores do grupo avançaram na discussão, trazendo as dimensões da colonialidade do ser
e do saber. Essa matriz colonial do poder (Mignolo 2017), baseada na classificação racial/étnica, é o que
garante a contínua dominação das instituições, dos corpos e das mentes latino-americanas — elementos que
compõem o sistema moderno-colonial. Para mais sobre o pensamento decolonial, ver por exemplo (Pereira
e Blanco 2021, Capítulo 5).
Identidades fraturadas e segurança ontológica: uma análise decolonial de gênero [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
16-23
demandando e legitimando processos de securitização, em que o “Outro” diferente
(perverso) é apresentado como uma ameaça à estabilidade identitária do “Eu”
(Browning e Joenniemi 2017).
Como argumenta Huysmans (1998), ao analisar a segurança ontológica
como o gerenciamento da ordem social, observamos como a busca por essa
segurança legitima a exclusão e securitização dos sujeitos ou identidades que
não se encaixam em ou confrontam tal ordem. Para o feminismo decolonial,
esses sujeitos são aqueles que diferem da imagem ocidental, branca, patriarcal
e heteronormativa. Esse processo de diferenciação, iniciado com a colonização,
perpetua-se até os dias atuais, disciplinando certos corpos e vivências sob a
justificativa de busca e garantia da segurança nacional. A ideia do Estado como
garantidor da “segurança ontológica” é, portanto, originada dentro de uma lógica
que demanda uma estabilidade identitária, de modo a classificar e ordenar o
mundo, a depender do que os sujeitos são, têm e conhecem — tendo como
padrão a modernidade ocidental.
Com a intenção de evidenciar a opressão de gênero racializada e capitalista e
pensar a possibilidade de superar essa colonialidade, Lugones (2014) propõe um
percurso rumo ao feminismo decolonial. Para isso, é necessário “compreender
aquele/a que resiste como oprimido/a pela construção colonizadora do lócus
fraturado” (Lugones 2014, 941). Em outras palavras, é necessário afirmar e focar
na existência daqueles sujeitos que são atravessados pelos marcadores de raça,
gênero, classe e sexualidade, os quais foram impostos a partir do encontro colonial.
O lócus fraturado é, para Lugones, o espaço habitado pelo/a colonizado/a,
mas que, também, pode ser entendido como uma forma de subjetividade
complexa e multifacetada. Foi nesse espaço que o colonizador impôs a redução
e classificação dos/as colonizados/as. No entanto, ele também é um espaço de
múltiplas percepções e habitações. Como escreve Lugones (2014, 943): “o lócus
é fraturado pela presença que resiste, a subjetividade ativa dos/as colonizados/
as contra a invasão colonial de si próprios/as na comunidade desde o habitar-
se a si mesmos/as. Vemos aqui o espelhamento da multiplicidade da mulher de
cor nos feminismos de mulheres de cor”.
A proposta de Lugones é, portanto, lançar luz sobre as diferenças,
as imbricações (de gênero, raça, classe, sexualidade etc.) e as fraturas que
atravessam os espaços e corpos que foram colonizados. São essas fraturas, e seu
potencial transformador, que a pesquisadora e autora-ativista chicana, lésbica
e feminista Gloria Evangelina Anzaldúa exalta. Alinhada aos estudos queer,
Helena Salim de Castro; Ramon Blanco
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
17-23
Anzaldúa argumenta, em seus trabalhos, que é necessário rejeitar e resistir contra
os rótulos rígidos e as identidades unitárias. Em sua vida e em seus escritos
(que se misturam), a autora olhava para aqueles/as que habitam as fronteiras,
que se encontram entre dois mundos, que estão em “nepantla”. Essa palavra,
originária da língua asteca Nahuatl, significa “terra entre meio” e refere-se ao
espaço transicional”, “intermediário”, sem fronteiras claras, no qual as “auto
concepções e visões de mundo individuais e coletivas são destruídas”. É o espaço
em que, como explica Keating (2005, 1, tradução nossa), se desmancham aquelas
categorias aparentemente fixas — baseadas em gênero, raça, etnia, sexualidade,
status econômico, saúde, religião31”.
Segundo Ortega (2005, 79, tradução nossa), para além de um espaço geográfico,
nepantla “é a própria experiência daqueles que vivem uma vida intermediária
porque são multiculturais, multifacetados, múltiplos, porque seu ser está preso
no meio de ambiguidades, contradições e múltiplas possibilidades
32
.”. As pessoas
que vivem nesses espaços são chamadas, por Anzaldúa, como “nepantleras”: são
os que “vivem dentro e entre os múltiplos mundos” (Keating 2005, 2, tradução
nossa). Além disso, nepantla também “indica um espaço/tempo de grande
confusão, ansiedade e perda de controle” para aqueles/as que o/a habitam
(Keating 2005, 6, tradução nossa). Segundo Anzaldúa,
Nepantla é uma terra desconhecida, e viver nessa zona liminar significa estar
em um estado constante de deslocamento — um sentimento desconfortável,
até mesmo alarmante. A maioria de nós mora em nepantla a maior parte
do tempo, ela se tornou uma espécie de “lar”. Embora esse estado nos
conecte a outras ideias, pessoas e mundos, nos sentimos ameaçados por
essas novas conexões e pela mudança que elas geram
33
(Anzaldúa apud
Keating 2005, tradução nossa).
As pessoas localizadas na “fronteira”, em “nepantla”, vivenciam o que
Anzaldúa chama de um “terrorismo íntimo”. Essa é uma sensação de constante
medo, de não identificação com nenhuma das culturas existentes — com nenhum
31 Original: “Apparently fixed categories—whether based on gender, ethnicity/ ‘race,’ sexuality, economic status,
health, religion, or some combination of these elements and often others as well—begin eroding. ”.
32 Original: “it is the very experience of those who live an in-between life because they are multicultural, multivoiced,
multiplicitous, because their being is caught in the midst of ambiguities, contradictions, and multiple possibilities. ”.
33 Original: “Nepantla es tierra desconocida, and living in this liminal zone means being in a constant state of
displacement—an uncomfortable, even alarming feeling. Most of us dwell in nepantla so much of the time it’s
become a sort of “home.” Though this state links us to other ideas, people, and worlds, we feel threatened by
these new connections and the change they engender. ”.
Identidades fraturadas e segurança ontológica: uma análise decolonial de gênero [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
18-23
dos “lados” em que o mundo está dividido — e que acomete algumas mulheres.
Nas palavras da autora: “Irritada com a cultura materna, sentindo-se “alienígena”
na cultura dominante, a mulher negra não se sente segura na vida interior do
seu ser. Paralisada, ela não consegue reagir, o rosto preso nos interstícios, nos
espaços entre os diferentes mundos que habita.34” (Anzaldúa 2021 [1987], 62,
tradução nossa).
Em uma leitura desde uma perspectiva estadocêntrica da “segurança
ontológica”, como aquela desenvolvida por Mitzen (2006) e Steele (2008), esta
situação de “terrorismo íntimo” poderia ser equiparada à insegurança ontológica;
a uma situação de incertezas, de ansiedade e perda de agência por não se
identificar com nenhuma das “culturas” (ou identidade). Por conseguinte, como
defende Mitzen (2006), para superar essa insegurança haveria a necessidade
de buscar a estabilidade e as rotinas, de identificar-se com algum dos lados
estabelecidos ou construir uma nova identidade específica, que permita a sensação
de pertencimento — o que, no limite, ainda mantém a lógica binária do “eu”
versus o “outro”.
No entanto, como assinala Anzaldúa, é quando se encontram em nepantla
que as pessoas desenvolvem a chamada “consciência Coyolxauhqui”, uma
consciência que emerge da escuridão, um chamado para a transformação, para
a criação de um novo eu (Lara 2005). Não é um momento de perda de agência.
Ao contrário, é uma tomada de consciência das fraturas e do potencial de
resistência. É um momento em que, trazendo a reflexão de Heidegger, vemos o
“ser autêntico e resoluto”. Como explicam Browning e Joenniemi (2017), para
esse ser não basta apenas sobreviver e aceitar as situações da vida como dadas.
Ele as questiona e as confronta, “reflexivamente ciente dos limites de sua vida,
busca algo mais. Ao fazer isso, a ansiedade se torna uma força potencialmente
geradora e criativa 35” (Browning e Joenniemi 2017, 14, tradução nossa).
Assim, como explica Lugones (2005, 89, tradução nossa): “O momento de
terror íntimo não é em si um estado de laboratório. É a habitação consciente desse
estado, a sensação de ser pressionado, que inicia o processo de resistência36”.
34 Original: “Enajenada de su cultura madre, sintiéndose ‘ajena’ en la cultura dominante, la mujer de color no
se siente segura dentro de la vida interior de su ser. Paralizada, no es capaz de reaccionar, su rostro atrapado
en los intersticios, los espacios entre los distintos mundos que habita.”.
35 Original: “reflexively aware of the limits of their life, seeks something more. In doing so, anxiety becomes a
potentially generative and creative force.”
36 Original: “The moment of intimate terror is not itself a liberatory state. It is the aware inhabitation of this
state, the sensing of being pressed, that begins the process of resistance. ”.
Helena Salim de Castro; Ramon Blanco
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
19-23
Seguindo a reflexão de Anzaldúa, a socióloga argentina fala do encontro do eu
oprimido e do eu resistente em uma luta íntima: “Sentir o terror já é uma atividade
contra o sentido daqueles que exercem o controle sobre e contra ela37” (Lugones
2005, 90, tradução nossa). É, em outras palavras, a rejeição aos regimes de
normalidade, ao projeto político de disciplinar sujeitos, que se sustenta em uma
busca fantasiosa pela completude enquanto produz como objetos desumanizados
os sujeitos considerados abjetos e perversos (Bilgic 2024)
É a partir desse processo que nasce a “nova mestiça”, “cuja luta interior levou
à percepção de que não se é um ou outro, mas uma mistura, uma amassadura,
um “amasamiento” de diferentes culturas ou possibilidades38” (Ortega 2005,
81, tradução nossa). Essa “nova mestiça” não é uma identidade nova, com
suas bordas definidas e fixas. É um dos resultados de uma luta, que, por um
lado, é interna, de tomada de consciência e aceitação das próprias fraturas (de
percepção do “lócus fraturado”), e, por outro, é um movimento de rebeldia
contra a “cultura materna” e a “cultura dominante”. É a rejeição aos binarismos,
às tentativas de fixação e enclausuramento que tentam apagar e/ou criminalizar
as ambiguidades e as imbricações.
Esse processo de consciência da mestiçagem ressalta o potencial de
transformação do deslocamento e da mudança, que não é apenas físico, mas,
também, interno. É um processo de superação das dualidades impostas pelas
fronteiras (mulher/homem; objeto/sujeito; razão/paixão etc.) e de um novo olhar
sobre o papel das incertezas e da ansiedade nas vivências. Assim como Rossdale
(2015) argumenta que a “insegurança ontológica” abre espaço para o potencial
político, as análises das autoras feministas decoloniais elucidam a importância
de reconhecer as diferenças e compreender o deslocamento como caminho para
outras práticas de proteção e segurança, que diferem e se opõem à política de
segurança estatal, onde predomina o disciplinamento e a securitização.
É, portanto, a partir da identificação das diferenças, nos espaços de conflito e
de coalização, ou seja, do lócus fraturado, que a oposição ao projeto disciplinador
começa. Esse processo, de transição e de liberação também significa, de acordo
com Lugones (2005), uma ruptura com a colonização. Como escreve Ochy
Curiel (2016), é necessário um olhar atento às imbricações das opressões, ou
37 Original: “To feel the terror is already an activity against the sense of those who exercise control over and
against her. ”.
38 Original: “the ‘new mestizo,’ whose inner struggle has led to a realization that one is not one our the other but
a mixture, a kneading, an ‘amasamiento’ of different cultures or possibilities”.
Identidades fraturadas e segurança ontológica: uma análise decolonial de gênero [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
20-23
seja, “entender como elas atravessaram historicamente nossa região desde o
colonialismo até a colonialidade contemporânea e como têm se expressado em
certos sujeitos que não têm privilégios de raça, classe, sexo e sexualidade, como
são as mulheres negras, indígenas e campesinas da região39.” (Curiel 2016, 80,
tradução nossa). Essa consciência mestiça, essa reflexividade, é o primeiro passo
para a transformação.
Considerações finais
Buscamos analisar, por meio de uma perspectiva decolonial e de gênero, a
literatura sobre “(in)segurança ontológica” nas Relações Internacionais. Vários
teóricos e estudiosos da área trouxeram o conceito para investigar a dinâmica das
relações interestatais, compreender os comportamentos de diferentes atores no
sistema internacional e debater como a busca por “segurança ontológica” pode
levar à marginalização e securitização de grupos e indivíduos dentro e através
das fronteiras nacionais.
Conforme ressaltamos, um dos pontos criticados e tensionados no debate
sobre “(in)segurança ontológica” é a relação entre identidade e o senso de
pertencimento. Alguns autores, dentro da literatura de Relações Internacionais,
argumentam que a segurança ontológica dependeria de um processo de definição
e fixação de identidades. Para se sentir seguro ou ter a sua segurança garantida
pelo Estado, os indivíduos precisariam se identificar com algum grupo. No
entanto, essa concepção leva à essencialização das identidades e à securitização
daqueles elementos que não podem ser classificados e ordenados pelos Estados.
Essa crítica tem sido retomada e aprofundada por autores que dialogam com
a Teoria Queer e que trazem para o debate aspectos relacionados ao histórico
colonial e à ordenação racial. É nessa discussão que localizamos este artigo.
Nosso objetivo foi tensionar e rastrear no que se baseia essa necessidade por
identidades fixas e bem definidas e pensar como um olhar atento às fraturas,
aos espaços transitórios, ao lócus fraturado oriundo da colonização pode nos
mostrar o potencial dos deslocamentos e das indefinições para construir outras
possibilidades de proteção e entendimentos de segurança.
39 Original: “se trata de entender cómo estas han atravesado históricamente nuestra región desde el colonialismo
hasta al colonialidad contemporánea y como se ha expresado en ciertos sujetos que no han tenido privilegios
de raza, clase, sexo y sexualidad, como son las mujeres negras, indígenas y campesinas de la región. ”.
Helena Salim de Castro; Ramon Blanco
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
21-23
A partir de reflexões construídas desde uma posição de fronteira, de um
espaço colonizado e fraturado, com uma perspectiva feminista e decolonizadora,
os trabalhos de Lugones e Anzaldúa nos ajudam a questionar os pressupostos
coloniais e patriarcais que sustentam a ideia de “segurança do ser”. As políticas
que são formuladas em nome dessa segurança ignoram, silenciam e, inclusive,
criminalizam as experiências e os corpos daqueles que ocupam os espaços de
fronteira, seja ela geográfica, sexual, racial e/ou de gênero.
Ao elucidar o caráter fraturado e transgressor dos corpos e subjetividades
que foram atravessados pelos processos de colonização e ainda vivenciam a
colonialidade, as análises daquelas autoras nos ajudam a tensionar o debate
sobre “segurança ontológica”. Particularmente dentro das Relações Internacionais,
esse tensionamento nos convida a romper com a segurança enquanto prática
de ordenamento e estabilidade. As experiências dos corpos e subjetividades
fraturados mostram que o deslocamento e a instabilidade não significam a
perda de agência e, com isso, apontam para outros caminhos para se pensar em
estratégias decoloniais de proteção e segurança.
Referências
Anzaldúa, Gloria. 2021 [1987]. Boderlands/La Frontera: the new mestiza. [Traducción
de Carmen Valle]. Madrid: Capitán Swing Libros, S.L. ISBN: 978-84-945043-2-7
Armstrong, Megan A. 2023. Why Is the Zombie Apocalypse so Terrible for Women?
Gender, Militarism, and Ontological Insecurity at the End of the World. International
Feminist Journal of Politics 25, no. 5: 801–18. doi:10.1080/14616742.2023.2208140.
Ballestrin, Luciana. 2013. América Latina e o Giro Decolonial. Revista Brasileira de
Ciência Política, no. 11: 89–117. https://doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004
Bilgic, Ali. 2024. Queering ontological (in)security: a psychoanalysis of political
homophobia. Critical Studies on Security, October, 1-6.https://doi.org/10.1080/2
1624887.2024.2416302
Browning, Christopher S and Joenniemi, Pertti. 2017. Ontological security, self-articulation
and the securitization of identity. Cooperation and Conflict, 52, no.1: 31-47. https://
doi.org/10.1177/0010836716653161
Cash, John, and Catarina Kinnvall. 2017. Postcolonial Bordering and Ontological
Insecurities. Postcolonial Studies 20, no. 3: 267–74. https://www.tandfonline.
com/doi/full/10.1080/13688790.2017.1391670
Identidades fraturadas e segurança ontológica: uma análise decolonial de gênero [...]
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
22-23
Curiel, Ochy. 2016. “De las Identidades a la Imbricación de las Opresiones.” In Encrespando
— Anais do I Seminário Internacional: Refletindo a Década Internacional dos
Afrodescendentes (ONU, 2015-2024). Brasília: Brado Negro, 75–89. ISBN: 978-85-
69175-06-3
Gaweda, Barbara. 2022. The Gendered Discourses of Illiberal Demographic Policy
in Poland and in Russia.Politics and Governance, 10, no.4: 49-60. https://doi.
org/10.17645/pag.v10i4.5516
Gehring, L. 2023. The Autopoetics of the Self: A ‘Demonic’ Approach to Ontological
Security Studies. European Journal of International Security 8, no. 4: 413–30.
https://doi.org/10.1017/eis.2023.13.
Gentry, Caron E. 2020. The Politics of Hope: Privilege, Despair and Political Theology.
International Affairs 96, no. 2: 365–82. https://doi.org/10.1093/ia/iiaa011
Hansen, Emil Sondaj. 2023. Post-Colonial Gaslighting and Greenlandic Independence:
When Ontological Insecurity Sustains Hierarchy. Cooperation and Conflict 58, no.
4: 460–84. https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/00108367231163816
Huysmans, J. 1998. Security! What Do You Mean? From Concept to Thick Signifier.
European Journal of International Relations 4, no. 2: 226–55. https://doi.org/10.
1177/1354066198004002004.
Innes, Alexandria. 2023. Accounting for inequalities: divided selves and divided
states in International Relations. European Journal of International Relations, doi:
10.1177/13540661231158529
Keating, AnaLouise, ed. 2005. EntreMundos/Among Worlds: New Perspectives on Gloria
E. Anzaldúa. New York: Palgrave Macmillan. ISBN: 1-4039-6721-0.
Kinnvall, Catarina. 2015. Borders and Fear: Insecurity, Gender and the Far Right in
Europe. Journal of Contemporary European Studies 23, no. 4: 514-529, http://
dx.doi.org/10.1080/14782804.2015.1056115
Kinnvall, Catarina. 2017. Feeling Ontologically (In)Secure: States, Traumas and the
Governing of Gendered Space. Cooperation and Conflict 52, no. 1: 90–108. https://
journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0010836716641137
Lara, Irene. 2005. “Daughter of Coatlicue: An Interview with Gloria Anzaldúa.” In
EntreMundos/Among Worlds: New Perspectives on Gloria E. Anzaldúa, edited by
AnaLouise Keating, 41–56. New York: Palgrave Macmillan.
Lugones, María. 2005. “From Within Germinative Stasis: Creating Active Subjectivity,
Resistant Agency.” In EntreMundos/Among Worlds: New Perspectives on Gloria E.
Anzaldúa, edited by AnaLouise Keating, 85–100. New York: Palgrave Macmillan.
Lugones, María. 2014. Rumo a um Feminismo Descolonial. Revista Estudos Feministas 22:
935–52 https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013
Helena Salim de Castro; Ramon Blanco
Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 20, n. 1, e1538, 2025
23-23
Mignolo, Walter D. 2017. Colonialidade: O Lado Mais Escuro da Modernidade. Revista
Brasileira de Ciências Sociais 32, no. 94. https://doi.org/10.17666/329402/2017.
Mitzen, Jennifer. 2006. Ontological security in world politics: State identity and the
security dilemma. European Journal of International Relations 12, no. 3: 341-370.
https://doi.org/10.1177/135406610606734
Ortega, Mariana. 2005. “Apertures of In-Betweenness, of Selves in the Middle.” In
EntreMundos/Among Worlds: New Perspectives on Gloria E. Anzaldúa, edited by
AnaLouise Keating, 77–84. New York: Palgrave Macmillan.
Peoples, Columba, and Nick Vaughan-Williams. 2021. “Ontological Security.” In Critical
Security Studies: An Introduction, 3rd ed., 66–79. Abingdon, Oxon; New York, NY:
Routledge.
Pereira, Alexsandro e Blanco, Ramon. 2021. Teorias Contemporâneas de Relações
Internacionais. Curitiba: Intersaberes.
Rossdale, Chris. 2015. Enclosing Critique: The Limits of Ontological Security. International
Political Sociology 9, no. 4: 369–86. https://doi.org/10.1111/ips.12103
Shani, Giorgio. 2017. Human Security as Ontological Security: A Post-Colonial Approach.
Postcolonial Studies 20, no. 3: 275–93. DOI: 10.1080/13688790.2017.1378062
Steele, Brent J. 2008. Ontological Security in International Relations: Self Identity and
the IR State. Abingdon: Routledge.
Towns, Ann. 2002. Paradoxes of (In)Equality: Something Is Rotten in the Gender Equal
State of Sweden. Cooperation and Conflict 37, no. 2: 157–79 https://journals.
sagepub.com/doi/abs/10.1177/0010836702037002975
Untalan, Carmina Yu. 2019. Decentering the Self, Seeing Like the Other: Toward a
Postcolonial Approach to Ontological Security. International Political Sociology 14,
no. 1: 1–17. https://doi.org/10.1093/ips/olz018
Zarakol, Ayşe. 2017. States and Ontological Security: A Historical Rethinking. Cooperation
and Conflict 52, no. 1: 48–68. https://doi.org/10.1177/0010836716653158